sábado, 23 de julho de 2011

"O projeto petista encalhou, uma precisa de revisão"


Claudio Leal

"O projeto petista, no Brasil, precisa de uma revisão. Ele encalhou. Nós estamos vivendo um momento de estagnação. Total", criticou o jornalista e mestre em filosofia política pela PUC-SP, Francisco Viana, que lançou este mês o livro "Marx e o labirinto da utopia".

A obra investiga as relações entre o filósofo e economista alemão Karl Marx e o pensamento de utopistas do século XIX, como Charles Fourrier, Saint-Simon e Robert Owen.

Colunista de Terra Magazine, Viana já foi repórter e editor no jornal O Globo e nas revistas Senhor e Istoé.

Desde 1993 ele se dedica à Comunicação Organizacional, com especialidade em gestão de crises e planejamento estratégico.

O livro está disponível, em versão digital, na loja virtual Amazon.

- A luta humana de Marx para cá, dos utopistas para cá, é a luta por uma reforma ativa. Os utopistas acabaram pegando em armas, e eram contra as armas - afirma Viana.

"Todos se interrogaram quanto à antecipação do futuro, sem a exploração do homem pelo homem, sonho perseguido desde a Grécia Antiga e que ganhou intensidade no Renascimento. Trata-se de uma vontade que hoje se encontra sufocada pelo consumismo, mas que está ressurgindo e vai ganhar força crescente. O importante, e nós vamos conquistar, é construir uma democracia como a grega, só que sem escravos", analisa Viana, em "Marx e o labirinto da utopia".

Nesta entrevista, Viana associa seu livro ao debate sobre as contradições do crescimento econômico brasileiro.

"Nós estamos vivendo uma ilusão. Onde está o projeto de esquerda ou à esquerda no Brasil? Não existe. Onde está a utopia brasileira? Comprar mais carros?", questiona.

Terra Magazine - Qual a atualidade de falar do marxismo num momento de crise financeira mundial?

Francisco Viana - O marxismo não se concluiu. É uma questão em aberto. Porque, na verdade, o marxismo nunca existiu. O que existe é o pensamento de Marx, uma outra coisa diferente do marxismo. Tanto que, na minha tese de mestrado na PUC (SP), em nenhum momento eu usei a palavra "marxismo". Usei "pensamento marxiano". Porque há uma grande diferença entre o marxismo e o pensamento de Marx. O pensamento de Marx foi o que ele concebeu como emancipação do homem. É a emancipação do trabalho. Se você olhar, o que é a vida, hoje? Vamos esquecer a sociedade de classes, vamos esquecer o capital... E vamos pensar no seguinte: o que é a vida? É uma batalha infernal pela sobrevivência. Que, guardadas as proporções, é uma batalha pior hoje do que no tempo do homem primitivo. O homem lutava contra as feras e o meio ambiente. Essa batalha mudou de forma, mas o conteúdo dela é o mesmo.

Marx pensou numa sociedade livre da ditadura do trabalho. Ele diz isso em sua obra, principalmente "A Ideologia Alemã" (1845-1846) e "A Sagrada Família" (1845) e, condensado, em "O Capital"... A luta do homem influencia as relações do homem consigo próprio e com a produção. Qual é a diferença entre uma Mercedes e um fusca? A publicidade. O fusca anda, e a Mercedes anda. Qual é a diferença entre um cara com muito dinheiro e o cara que não tem dinheiro? Nenhuma. O que vai definir o ser humano é o conteúdo, não a grana que ele tem. Essa capacidade, maior ou menor, que a pessoa tem de ser escrava ou não ser escrava da produção, é que vai diferenciar o ser humano. Então, Marx não morreu. O que definhou foi o marxismo, porque conseguiu em grande parte eliminar a economia de mercado, mas não conseguiu aquilo que Marx mais desejava: o homem pleno, livre. A dificuldade das sociedades de hoje é que, cada vez mais, as pessoas são livres, mas permanecem escravas do capital e do trabalho.

Mas houve um refluxo desse marxismo, que inevitavelmente é associado ao pensamento de Marx.
E não podem ser dissociados, até porque essa vertente do pensamento de Marx é leninista. Por sua vez, é a vertente que vem do jacobinismo, de Robespierre. Não é uma coisa estranha ao pensamento de Marx. Há um momento da vida de Marx, o da Comuna de Paris, que ele chega à conclusão de que você só conseguiria vencer a sociedade de classes pela força. Curiosamente, não foi ele que chegou a essa conclusão.

Quem foi?

A originalidade do meu livro não está na discussão de Marx, mas no entrelaçamento entre o pensamento de Marx e os chamados "utopistas", na definição de Engels. Os utopistas são três: Charles Fourrier, Saint-Simon e Robert Owen. Esses utopistas defendiam uma transição pacífica para o socialismo. Mas, curiosamente, são eles que vão empalmar a luta armada em 1848, quando há uma grande revolução europeia, que acontece quase que simultaneamente ao lançamento do Manifesto Comunista, mas que não foi um movimento motivado pelo Manifesto. Foi um movimento que já tinha uma raiz utópica, quer dizer, uma raiz do desencanto do utopismo e que vai chegar no seu ápice em 1870, que é quando fecha o ciclo da Revolução Francesa. Ela não termina com Napoleão, é a tese que eu defendo. Mais uma vez, ela vai ser incentivada pelos utopistas.

Uma coisa curiosa: Marx foi contra a rebelião no início. Sempre foi contra rebeliões. Ele entendia que o operariado só devia se levantar se estivesse organizado e consciente do que iria acontecer. Mas ele se torna a favor, é o principal escritor e propagandista, com o risco da própria vida, inclusive, em Londres, porque foi acusado de sedição, de querer exterminar a coroa... Ele é contra antes, mas quando acontece, empalma o processo. Lênin percebeu isso. Se nós formos ver também a história, Lênin vai pregar a Revolução Russa quase que por um impulso das contingências, mas não porque ele pensasse no levante. Os bolcheviques eram minoria.

Não há um descrédito da palavra "utopia"?

O que ocorreu para haver esse desgaste? Hoje, a utopia é uma coisa improvável.
Mas isso aí já existia nessa época. E eu falo muito. Foi um trabalho que a direita e os conservadores conseguiram fazer e foram vitoriosos. Como nasce a utopia? Ela existe desde os tempos mais pretéritos, desde a Grécia antiga. A utopia era a mudança da vida social. Não é nada mais do que algo que ainda não aconteceu. Quando Thomas More escreve "Utopia", era uma sociedade igualitária. Agora, o grande utopista foi Marx. Quem criou a designação "os utopistas tradicionais" foi (Friedrich) Engels. Ele articulou, embora Marx fale muito dos utopistas, das propostas utópicas. Porque ele não acreditava na reforma. Ele entendia que as coisas só seriam mudadas se houvesse uma revolução. Não é por acaso que Marx entende que a revolução do proletariado acabaria com as classes. Ele entendia o proletariado como todos aqueles que abraçam a causa do trabalho, e não aqueles que abraçam a causa da exploração e a acumulação do capital. Marx era um leitor assíduo dos utopistas. Lia Bacon. Ele cita Thomas More não como um utopista ou um romancista, ele o cita como uma fonte real. Cita como se fossem fontes. Essa é uma parte de Marx que foi pouco lida e discutida.

Esses livros foram descobertos por acaso, numa época em que o stalinismo estava em alta. A reconstrução da obra de Marx, na União Soviética, foi uma epopeia. Porque a Alemanha, que detinha a obra de Marx, se recusava a que os livros saíssem de lá. Então, os livros tiveram de ser copiados. Reelaborar essas obras de Marx foi um trabalho infernal, no final do século 19, depois da morte de Marx, quando Engels começa a reconstituir a obra de Marx, um trabalho de aplanamento... Marx era desorganizado. Engels que fez esse trabalho. Eles se aproximaram mais pelas diferenças do que pelas similitudes. Marx era um cara que gostava do casamento, era bagunçado, não gostava do dinheiro, escrevia hoje uma coisa e amanhã não concluía. E Engels percebeu que Marx era um gênio. Como era um cara que nunca casou, totalmente contrário a essa história, Engels era organizado em tudo. Quando Marx morre, ele era conhecido dos russos. Os russos começam a se aproximar ainda antes da morte.

Como evoluiu a recepção a Marx é uma história à parte? De que forma o pensamento de Marx é usado, hoje, para explicar a crise econômica de 2008?

Há uma tentativa, há um caminhar de se rediscutir Marx. Qual é a atualidade de Marx? Outro dia, com um amigo que gosto muito, mas não leu Marx, eu estava falando da "Economia Política". E ele me corrigiu: "Você está querendo dizer 'a política econômica'?". A economia política é onde aqueles que detêm o poder, a força, o capital, dão o golpe na sociedade. A atualidade de Marx não está, hoje, na luta de classes, até porque a classe operária, que Marx conheceu, se diluiu. Hoje nós temos a classe trabalhadora, que envolve, inclusive, os executivos das grandes empresas. É outra coisa que as pessoas têm dificuldade em perceber. Na essência, embora Marx tenha criticado Hegel a vida toda, Marx nunca deixou de ser hegeliano, nunca abandonou a teoria do escravo e do senhor, de que o que diferencia o senhor do escravo é que o senhor não tem medo de morrer. O escravo tem. Há duas consciências. A ativa e a passiva. Marx sempre imaginou a consciência dialética, e a ativa que vai criando a consciência no embate. Todos esses movimentos de defesa do consumidor, de justiça, se isso fosse levado à prática, acabaria com o capitalismo.

Mesmo com a regulação?

Mesmo. Sempre gosto de temas cotidianos. A mulher do call-center. Imagina se ela chega e diz: "Eu me recuso a ligar para o cliente na hora tal". Imagina se os publicitários dissessem que, a partir de hoje, eles não iludiriam mais as pessoas com as propagandas. Imagina se todos nós passássemos a ter atitudes coerentes com o que se chama de ética. Marx nunca abraçou o sentido da ética tal como ela é concebida, a ética discursiva. Ele sempre abraçou a ética prática, de classe. Se a gente transpusesse esse sentido que está na "Sagrada Família" para os dias de hoje, o que seria a ética? A ética do cidadão. O cidadão dizer: "Não vou enganar o outro". O que Marx ambicionava, no fundo, era a verdade e o bem. Conheço pessoas que dizem: "Eu sou um ser ético". Ele é ético até o momento em que haja um conflito entre o interior e o exterior dele. E há essa coisa: "Mas é o meu emprego, o meu trabalho...".

Hegel tinha a consciência e a percepção de que há um momento, no mundo, em que as antigas práticas acabam. Mas, na realidade, eles não acabam. Vamos pegar um exemplo atual. O duelo entre o Pão-de-Açúcar, de Abílio Diniz, e o grupo francês Casino. Vamos fazer uma análise hegeliana do termo. São dois senhores brigando. Duas pessoas que não têm medo de morrer. Qual é a diferença? O presidente do grupo Casino (Jean-Charles Naour) é uma pessoa sofisticada, do mundo, um comunicador de primeiríssima linha, que deu um tiro mortal no Abílio Diniz. Qual foi o tiro mortal? A palavra "expropriação". Aí está a nuance. Abílio Diniz se comporta como senhor, mas ele só sabe lutar como o antigo senhor de engenho. Ele não tem a sofisticação do outro. Ele nunca discutiu a palavra "expropriação".

É também uma guerra semântica?

Sim. A palavra "expropriação" vai surgir na Inglaterra na época em que surge "utopia", no século XVI, quando a elite inglesa expropria as terras da Igreja. Quer dizer, se ele (Abílio) tivesse esse estofo intelectual para o enfrentamento, a guerra deixaria de ser semântica. Não podemos, numa sociedade que pretenda ser socialista, abolir o empresário. Porque tem uma energia para levar a sociedade adiante. Mas esta energia tem que estar sob controle. O próprio governo brasileiro recuou porque não teve capacidade de discutir essa palavrinha, "expropriação".

Como o Brasil se situa no debate sobre Marx?


Não se situa. O Brasil está vivendo a ditadura da economia, no pior sentido.

Mesmo com o Partido dos Trabalhadores?

Mesmo com o PT, e sobretudo com o PT. Veja, eu votei na Dilma, entendo que o projeto includente da sociedade é o melhor que tem, mas isso não abstrai a crítica à esquerda. Qual é o sentido de você promover uma inclusão social? Uma inclusão que se dê apenas pelo consumo pode guinar à direita ou à esquerda...

Pode conduzir a uma nova crise?

A uma crise imensa. Nós não temos, de um lado, aproveitado esse largo período de liberdade para criar uma consciência social, uma participação ativa na vida social, a partir do próprio exemplo da classe dominante. Quando falo na classe dominante, não estou falando de burguesia e proletariado, mas dos que organizam intelectualmente o poder. Veja o caso Palocci. Quem melhor definiu foi um prefeito do interior de São Paulo: "Palocci tinha se aburguesado". Vamos deixar de lado a questão do que devia se investigar na vida dele, o tráfico de influências etc. Palocci se tornou outra pessoa. Ele perdeu a raiz, a matriz de onde ele veio. Aí está a diferença. Os grandes revolucionários eram homens íntegros. Robespierre era chamado de "o incorruptível". Nós estamos vivendo uma ilusão. Onde está o projeto de esquerda ou à esquerda no Brasil? Não existe. Onde está a utopia brasileira? Comprar mais carros? Ter mais financiamento?

Que é uma coisa que foi muito propagada e defendida por Lula, no governo passado. Para onde caminha o crescimento brasileiro?
Tenho muita dificuldade de projeção. Mas os indicadores são de que nós não resistiríamos à primeira crise. As crises são contidas pelo consumo. Estamos repetindo, no Brasil, com a diferença de que temos um espaço grande a ocupar, o mesmo movimento neoliberal do mundo inteiro: política sem massa. A diferença é que Lula é uma pessoa orgânica. Veio de dentro do movimento sindical...

E tem a percepção da pobreza.

Quase de um pai: "Segura a barra, contenha a ansiedade". Se formos destampar a panela, o que vai acontecer? Hoje, por que o Brasil precisa sediar uma Copa? Qual é a vantagem? Qual é a utopia brasileira? Qual é o sonho brasileiro? O Brasil é, ainda, uma grande miragem. Com dados bons e perspectivas, mas sem mudanças que alterem a economia política, sem um trabalho das entidades de trabalhadores para que as pessoas tenham realmente consciência do que elas estão fazendo.

Ultimamente, não se fala mais em reformismo do que em revolução, até por influência de Gramsci?

Se for um reformismo efetivo e consciente, ele é muito mais contemporâneo do que a revolução pela revolução. Porque o pensamento de Marx, se nós formos olhar no conteúdo, é muito mais reformista do que revolucionário. A expressão "ditadura do proletariado" surge na medida em que a reação vai se ativando e a capacidade do trabalhador de enfrentamento dessa sociedade vai se arrefecendo. A luta humana de Marx para cá, dos utopistas para cá, é a luta por uma reforma ativa. Os utopistas acabaram pegando em armas, e eram contra as armas. Por que estigmatizam tanto o agitador? Uma pessoa motivada, consciente, arregimenta os outros - e essa pessoa é, naturalmente, considerada diferente e excluída. O mérito do Lula, seguramente, foi isso. Não de fazer reforma econômica, mas de mostrar que é possível que o trabalhador, no sentido amplo, mude, tenha um projeto diferente. Mas esse projeto petista, no Brasil, precisa de uma revisão. Ele encalhou. Nós estamos vivendo um momento de estagnação. Total. Não é por causa da Dilma ou de indivíduos. É por causa do projeto, que precisa ser revisto. Ele completou o ciclo.

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